A HQ do Bruno Maron sobre a Comic Con Experience [CCXP] é incrível só [e também] por existir. Ela escrutiniza nossa dicotomia de vendedores inseridos na narrativa do discurso comercial evangelizador nerd e autores fazendo Arte do alto de uma soberba intelectual desconectada disso. Despertou aqui sentimentos contraditórios, com os quais tento me entender.
Como o próprio Bruno, participante este ano da Área dos Artistas, precisamos ser “showmen sociáveis” cantando como sereias para outros nerds ouvirem o chamado. às vezes podemos nos sentir charlatões por fazer parte desse sacerdócio comercial baseado na fé alheia.
Também somos artistas, autores, criadores, com bagagem cultural e discurso próprio, por vezes contestador a ponto de desconstruir os alicerces do próprio meio em que estamos inseridos. Autores que querem ser valorizados por suas criações. Trunfos intelectuais que por vezes criam desconexão do aspecto comercial e alimentam o ego, como pode acontecer com qualquer personalidade na Academia.
Só o que me parece desmedido no discurso da HQ é uma visão de “alta cultura” sobre a “baixa cultura” do Cosplay, da Ficção Científica, dos Super-Heróis. A tese ultrapassada e em última análise pode ser vista até como elitista. Somos parte da formação dessas mitologias, no papel de consumidores ou de criadores.
O “atacadão das próteses identitárias” de “saldo negativo no capital erótico”, como diz o Raio Negro na HQ do Bruno, é para o público um dos melhores aspectos desse tipo de evento, por mais ridículo que possa parecer para quem está de fora. Seja como cosplayers, seja pela pura excitação de se compartilhar um gosto de forma comunitária. De fato, essas práticas são uma representação de como o mundo pode ser diverso, fluido, acolhedor.
E também exaltador do simples desejo humano de se acessar diferentes modelos psicológicos / arquetípicos e permitir que cada um seja o que quiser, quando quiser. Um futuro utópico que nossa miséria humana talvez nunca permita que alcancemos de maneira permanente, mas do qual ao menos por algumas horas podemos usufruir para tornar a existência de cada indivíduo mais tolerável.
As feiras de publicações e artes gráficas que brotam pelo país, e por São Paulo em particular, podem tentar se desassociar dessa dinâmica, mas além da “prótese identitária” do artista hipster, também possuem um forte aspecto comercial embutido. Seja no valor crescente do aluguel das mesas para artistas, seja no valor das obras – estas especificamente se aproximam mais da produção das Artes Plásticas, que exaltam o objeto único e exclusivo.
Uma comicon oferece na Área de Artistas prints de fanarts que custam por vezes tanto quanto uma publicação e não fazem uso de narrativa sequencial alguma; são uma compra emocional [este ano fiz parceria com artistas e vendi quase a mesma quantidade de prints quanto de HQs]. Uma feira de publicações oferece risografias decorativas e inclusive zines de baixa tiragem e poucas páginas que podem chegar a cinquenta Reais.
Afora o verdadeiro fomento ao mercado que um evento como a CCXP promove, há que se pensar sim em como as comicons são “templos da fé” da Cultura Pop, vendendo a salvação do fiel [nerd consumidor] pela aproximação com sacerdotes [artistas de várias mídias] para chegar à catarse divina [emoção arrebatadora]. Vai de cada um assumir ou não esse papel, o quanto entra nele e o quanto é honesto com o público leitor / consumidor. Nisso a HQ do Bruno é brilhante e instiga a reflexão sobre o quão honestos estamos sendo com o público e nós mesmos.
Essa “persona identitária” ao Autor eu já vesti em vários momentos, por necessidade, e hoje já até tomei certo gosto pelo bem que ela pode fazer ao ego e entendi sua razão de ser no circo comercial. Não sinto vergonha dela e brinco ao dizer que sempre fui um vendido, mas que até pouco tempo ninguém queria me comprar…
Nessa situação de troca de conversa, energia e débitos em conta [ou crédito no cartão], o melhor que podemos fazer em um evento como esse é nos aproximarmos das pessoas que vêm atrás do nosso trabalho da forma mais honesta possível ao tratá-las como iguais. Somos humanos como elas, sendo nossas poucas diferenças a afinidade com aquela forma de expressão artística e a insistência insana em querer viver de arte em um país cuja grande massa nos enxerga como vagabundos.
Mas não essas pessoas que chegam em nossas mesas numa comicon; elas nos vêem como os criadores daquelas histórias que tanto as divertem e fazem pensar [ainda que nos dias de evento estejamos mais pra lojistas]. Querem prestigiar nosso trabalho e saírem do templo da fé nerd tendo sido bem tratadas [“autor fulano é muito gente boa” é a frase que frequentadores de comicons mais dizem com alegria e certo alívio, e infelizmente há casos em que isso não acontece]. Por isso esse público merece nosso respeito e o tanto de humanidade que consigamos compartilhar naquele momento.
Enquanto minha disposição [física e mental], minha produção e a curadoria do evento permitirem, continuarei a participar da CCXP como quadrinista. Entendo de coração como pode ser difícil para um cara como o Bruno Maron fazer parte desse circo todo. Em todo evento com feira de autores, sem exceção, há um ou vários momentos em que estamos olhando para o nada, começa a tocar Sound of Silence na nossa cabeça e queremos sair dali correndo pra ansiedade social parar. Cada um lida com isso de um jeito – independente dos aspectos comerciais, alguns voluntariamente deixam de se inscrever no evento seguinte porque o cansaço emocional pode ser grande, mesmo que valha a pena pro bolso.
Mas eventualmente espero que o Bruno se [re]concilie com todas as contradições evocadas pela natureza dessa grande aglomeração descomunal de cinco dias. O trabalho dele é genial de verdade e vai fazer bem tanto a ele, quanto pras pessoas que o lêem, entender que temos muito mais em comum do que pensamos – porque, de qualquer forma, no fundo somos todos nerds que se sentem deslocados onde quer que estejam.
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